Em meio à reação pública, provocada pela excomunhão dos médicos que realizaram aborto em uma menina pernambucana de 9 anos, estuprada pelo padrasto e grávida de gêmeos, diversos argumentos e questionamentos acalorados, a favor e contra a decisão da Igreja Católica, encontraram seu caminho até as páginas da imprensa. Subitamente, ao invés de discutir as causas da tragédia da menor estuprada, o que podemos fazer para reduzir a frequência com que esse crime se repete em nossas cidades e como podemos ajudar suas vítimas, a sociedade brasileira mergulha num debate sobre os méritos da Igreja Católica e sua anacrônica instituição da excomunhão.
Entre os diversos argumentos pró e contra a ação da Igreja, muito poucos sequer endereçam o objetivo político da polêmica pública provocada, deliberadamente, pelo Arcebispo de Recife e Olinda. Todo o debate e energia investidos em discussões éticas e morais, tanto no ataque quanto na defesa da Igreja Católica, atendem e beneficiam, inadvertidamente, esse objetivo político. Por isso é importante expô-lo claramente, de forma que a sociedade brasileira tenha a opção de debater ou não, caso julgue relevante, os aspectos éticos das ações da Igreja. Paradoxalmente, contudo, responder a alguns dos questionamentos éticos levantados é a melhor maneira de expor a natureza política das excomunhões de Pernambuco.
Analisar e explicar essas três aparentes contradições – porque a Igreja suspendeu a excomunhão do Bispo Williamson, não cogita excomungar o padrasto estuprador e está em processo acelerado de canonização de Pio XII – é, na minha opinião, a maneira mais fácil para se entender como o incidente de Pernanambuco se encaixa no programa político implementado, na Igreja Católica, pelo Papa Bento XVI.
Hoje excomunga, amanhã beija
Em primeiro lugar, é preciso entender claramente o que é a excomunhão. A sanção da excomunhão é um anúncio oficial, que informa à comunidade católica de que as idéias e o comportamento de tal pessoa não devem ser seguidas e, também, notifica o clero de que essa pessoa não deve mais receber os sacramentos, com exceção da Reconciliação.
Do ponto de vista da Igreja são os fiéis que se excomungam – isto é afastam-se da comunidade, da comunhão; a ação da Igreja é apenas uma informação de que a excomunhão ocorreu. Segundo o direito canônico, praticar o aborto é um ato de excomunhão automática e, portanto, o que o Arcebispo de Olinda e Recife fez foi, simplesmente, comunicar a seu público o status, de facto, dos médicos e da mãe da vítima.
A forma usual de reverter a excomunhão envolve: uma declaração de arrependimento, a profissão do Credo (se a ofensa envolveu heresia) ou uma reafirmação de obediência, pelo excomungado; uma declaração de reconciliação, pelo padre ou bispo com poderes para emiti-la e, então, a realização do sacramento da Reconciliação.
A Excomunhão não é, portanto, um instrumento de punição, mas de pressão social, para que o(s) atingido(s) voltem a prestar obediência à doutrina e ao comando da Igreja. Como tal, é utilizado em casos de “crimes” (no sentido canônico) de consciência – aqueles em que o culpado agiu racional e deliberadamente, em desacordo com a doutrina Católica.
O bispo anti-semita Williamson percorreu o processo e o ritual de Reconciliação e, consequentemente, sua excomunhão foi encerrada. Aliás, sua excomunhão (em 1988), não tinha nenhuma relação com sua posição anti-semita. Williamson e outros três padres foram consagrados bispos, pelo arqui-conservador Cardeal Lefebvre, em desobediência frontal ao Vaticano, resultando na imediata excomunhão dos cinco. Lefebvre (morto em 91) foi o fundador e Williamson e os demais “bispos” são membros da Sociedade São Pio X, forte opositora às mesmas mudanças modernizadoras, introduzidas pelo Concílio Vaticano II que, agora, Bento XVI dedica-se a reverter (por exemplo, reintroduzindo a Missa Tridentina, abolida por Paulo VI, em 1963, e um dos quatro pontos centrais da rebelião de Lefebvre).
Crimes “comuns” ou pecados motivados pela ignorância ou por baixos instintos, como o estupro infantil, não requerem excomunhão porque, a princípio, nenhum católico tem dúvida sobre o estado, em pecado, do criminoso. No caso do pecador-criminoso, não há uma polêmica social e política a demandar um recurso de pressão social – como na batalha que a Igreja trava, pela condenação e criminalização do aborto.
O que nos leva ao terceiro e último questionamento levantado contra a excomunhão dos médicos pernambucanos: por que o papa da 2ª. Guerra, Pio XII, não excomungou Hitler pela prática, sob a égide da lei, de extermínio em massa? Não seria esse um caso típico, a demandar esclarecimento e orientação da numerosa população católica alemã, por parte de sua Igreja? A resposta oficial do Vaticano a esses questionamentos tem seguido a (fraca) linha de que “os tempos eram muito complicados” e que, nas complicadas circunstâncias, Pio XII fez o melhor que pôde. A verdade, nua e crua, é que não há mesmo coerência no emprego, pela Igreja Católica, do instrumento da excomunhão. Seu uso é ditado pela agenda política e pelas circunstâncias da ocasião. É, portanto, um instrumento político.
Qual é, então, o objetivo político das excomunhões (melhor dizendo: da decisão de comunicar publicamente, com alarde, o status de excomungados) dos médicos pernambucanos e da mãe da vítima (também ela, uma vítima)?
Desde a ascenção, Bento XVI deixou claro que sua estratégia para recuperar o prestígio e o poder da Igreja Católica, em declínio desde os anos 70, consistiria em eliminar o relativismo do discurso doutrinário, com isso “purificando o rebanho católico” – permanecendo os mais comprometidos e ativamente praticantes, ainda que ao preço de uma redução inicial no número de fiéis. Assumiu um discurso mais contundente (sempre de matiz conservador) em relação a temas polêmicos, como homossexualidade, aborto, contracepção e prevenção da AIDS; fortaleceu a influência de grupos e ordens ultra-direitista/ultra-conservadoras, como a já mencionada Sociedade São Pio X e a polêmica Opus Dei.
Essa estratégia está surtindo os efeitos desejados pois, de fato, os praticantes católicos estão assumindo matizes mais tradicionalistas e “carismáticos” e os menos praticantes ou menos alinhados à nova doutrina estão sendo progressivamente alienados da instituição.
É nesse processo que se enquadram as excomunhões de Pernambuco e, como instrumentos políticos, também foram muito bem sucedidas: ocuparam um imenso espaço na mídia e nas discussões do público, polarizaram os fiéis, elevando seu “investimento moral” na nova agenda doutrinária. Mais católicos tiveram que “escolher suas cores”, uns afastando-se mais, outros alinhando-se mais à instituição Católica. Uma obstetra de Guarulhos defende a excomunhão, no fórum de leitores do Estado, argumentando que não havia risco real de vida, para a menina de 9 anos, numa gestação e parto de gêmeos porque, em 1939, uma menina peruana “de estrutura franzina, teve um filho saudável aos 5 anos de idade”. Podemos, certamente, esperar mais excomunhões, canonizações polêmicas e outros movimentos de reconquista de poder e espaço de opinião, nos próximos anos de papado de Bento XVI.
Apostas arriscadas no cassino vazio
Não há dúvida de que a radicalização do discurso Católico está criando uma comunidade mais uniforme, combativa, comprometida com (e obediente à) autoridade central do Vaticano. Essa é a estratégia de Bento XVI, atualmente em implementação, em todo o mundo.
O preço que estamos pagando (e continuaremos a pagar) pela determinação férrea dessa implementação é bem ilustrado pelo caso de Pernambuco: a nova Igreja Católica não somente deixa de apoiar, como aumenta a miséria das vítimas de tragédias, se isso estiver em seu interesse político. Não tem escrúpulos, por exemplo, de desviar para sua agenda a atenção da sociedade que, ao invés de concentrar-se nas disfunções sociais que levam ao estupro de uma criança de 9 anos pelo padastro, foi arrastada para um debate anacrônico e irrelevante, sobre excomunhão, à força de declarações kafkanianas de um arcebispo desalmado, que afirma: "Esse padrasto cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente".
Resta saber se o sucesso inicial da estratégia de Bento XVI resultará em um maior número de fiéis, a longo prazo, ou se acabará por acelerar a migração de católicos para outras formas de cristianismo, ou mesmo para outras religiões, mais comprometidas com a realidade e os desafios do fiel do século 21.